Entre o fantástico e o maravilhoso: Chame como quiser
Nos estudos atuais sobre literatura fantástica, alguns especialistas, teóricos e mesmo a crítica, vêm dividindo opiniões em função do enquadramento teórico-crítico dessa literatura como gênero literário ou como modo literário. Uma questão bastante difusa. Decorre ainda que há quem coloque no mesmo rol narrativas fantásticas, estranhas, reais-maravilhosas, de ficção científica e de horror.
Tzvetan Todorov é indubitavelmente o teórico balizador desta tendência classificatória e isso se deve não ao fato de tê-la inaugurado, mas de ter, em 1968, com a clássica Introdução à literatura fantástica, organizado os estudos anteriores, reunindo-os, discutindo-os e, a partir deles, imprimido perspectiva teórica que agrupou formas similares de trabalho com o sobrenatural e apartou essas formas de outras, com características dissonantes. O tempo passa e com ele as classificações se bifurcam, se multiplicam, se confundem, e se atrapalham. Seja como for, ou “chamando como cada um quer”, o certo é que é minimamente plausível porque orienta tanto quem escreve quanto quem lê, duas classificações principais:
O discurso narrativo do “maravilhoso” não problematiza a dicotomia entre o real e o imaginário, posto que a verossimilhança não está no centro das preocupações deste discurso. O texto maravilhoso relata acontecimentos impossíveis de se realizar dentro de uma perspectiva empírica da realidade, sem aos menos referir-se ao absurdo que todo este relato possa parecer ao leitor. Instala seu universo irreal sem causar qualquer questionamento, estranhamento ou espanto no leitor. Já no ‘gênero’ Fantástico, o sobrenatural é tratado de uma forma muito diferente: surge em meio a um cenário familiar, cotidiano e verossímil. Tudo parece reproduzir a vida cotidiana, a normalidade das experiências conhecidas, quando algo inexplicável e extraordinário rompe a estabilidade deste mundo natural e defronta as personagens com o impasse da razão. A partir deste momento, a retórica da narrativa do Fantástico elabora conjecturas racionais a respeito do evento sobrenatural que nunca são comprovadas de fato. Ou seja, o discurso narrativo fantástico constrói e mantém as personagens num estado de incerteza permanente diante da verdadeira índole dos fenômenos meta-empíricos (situações não comprovadas através de experiência), que cruzam o caminho de suas vidas.
E é assim que em um certo livro de contos, nos deparamos com a história de um rapaz que estranhamente começa a sentir partes de seu corpo desparecerem (Invisível). Já em outro conto (O jardim), um casal em profunda crise de relacionamento empreende viagem a um jardim encantado para tentar reverter a situação de desamor em um entrevista com uma entidade sobrenatural chamada a imperatriz do amor. Mais adiante, um diálogo entre um morto e um Caronte (barqueiro do Hades, que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que dividem o mundo dos vivos do mundo dos mortos) – conto “O barqueiro”; e ainda, outro texto inusitado. Personagens que vivem desesperadamente em busca do amor numa sociedade em que literalmente as pessoas usam além das máscaras sociais tão nossas conhecidas, máscaras físicas mesmo. São histórias diferentes entre si, mas que possuem a similaridade de enfeixar em suas tramas acontecimentos insólitos. Outros contos beiram o anedótico...
As situações e personagens acima fazem parte do livro de contos “Chame como quiser do escritor Anderson Henrique reunindo 13 de suas histórias curtas e onde o leitor assiste estupefato em parte dos textos, a um desenrolar detalhado de acontecimentos impensáveis. O mundo girando em um caleidoscópio infinito de possibilidades. Olhando com cuidado, e sob as perspectivas das “classificações” já apresentadas, podemos observar nas fendas do texto a resposta para a proposição do título, “Chame como quiser”. Todavia no ofício da escrita ou a arte de criar e (re)inventar realidades, sem a preocupação de delimitar gêneros ou modos narrativos, a ficção desse autor corre solta. Para além da expectativa que ronda as histórias, temos a curiosidade despertada para saber o que vai acontecer no final. O fio que as une perpassa por altas doses de angústia, constatações dramáticas, circunstâncias absurdas e, especialmente, por uma total imprevisibilidade. O autor é bom na arte de inventar, e observe-se que assim reinventa temas do fantástico explorando áreas específicas e produzindo um fluxo profícuo de literatura de cunho fantástico. Na capa da obra sintomaticamente está escrito no rodapé: livro 2 de 1. E ficamos muito à vontade para “Chamar como quisermos” sua literatura.
Há outros textos, por sinal muito bem trabalhados ( O jantar e Multiplicai), nos quais o fantástico emerge do real para revelar uma realidade outra – a do interior do ser. E é do drama psicológico do sujeito que surge um duplo do protagonista. Entram em evidência questões em torno do “eu”, da egolatria, e de sua relação com os outros: Quem eu sou? Qual o meu papel na sociedade? E se eu não fosse eu? E se eu fosse outro? E se o outro fosse eu? Trata-se do individuo multifacetado nessa nossa sociedade do espetáculo, que traz consigo inúmeras questões a implicar admissão de outras realidades possíveis, da existência de outros “eus” e de outras vidas.
É verdadeiramente gratificante quando lemos um escritor com pleno domínio da sintaxe que determina as relações formais e interliga os constituintes do texto atribuindo-lhe a coerência interna numa estrutura que nos cativa e atrai. Mas também é preciso atentar, sobretudo no caso da short story, e independente de “classificações”, para aquele momento em que o autor-narrador aprimora a sua revelação, ilumina mais o seu instante crítico. Une as duas pontas do leque, de tal forma que a impressão inicial se revigore nas palavras do fecho num o conjunto de reflexões e sentimentos que busca suscitar na consciência do leitor.. É quando a estrutura da história curta, que é muito delicada e muito tênue atinge então seu momento de maior sedução e perdura...
Trecho do conto “O jantar”.
– Se todos o admiram porque a preocupação? Aproveite. As pessoas fazem tanta publicidade de si mesmas e você aí rejeitando uma dádiva porque precisa de uma explicação. Há toda uma geração aterrorizada pelo anonimato e você preocupado com porquês.
– Mas nada disso é verdade. Eu não sou a pessoa que imaginam.
– Entenda Rui: ninguém é coisa alguma. No ventre da sua mãe você é feto. Nasce um bebê e é convertido em filho. Entra para escola e vira estudante. Faz 18, eleitor. De filho e se torna pai e depois avô. O filho de seu filho tem um filho e voilá: bisavô. A vida é isso, meu caro: nada é duradouro. Um dia essa massa egocêntrica e cheia de vaidade vai se tornar um saco de ossos; e depois, só ossos; e depois, pó. Um conselho: aproveite enquanto a celebridade sorri com sua prótese dourada. Não costuma durar.
por Krishnamurti Góes dos Anjos para o site Cronopios.
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