Maresia, misericórdia - Gabriele Gomes
O título é sonoro. Não por coincidência. A poesia de Gabriele Gomes é melodiosa e sensorial. Coloca Elvis, Rimbaud e Amy Whinehouse na sala de jantar para um banquete. Há cor também. Muitos tons. Construções ousadas que misturam elementos abstratos a situações corriqueiras. Não se impressione — não é algo que deveria impressionar: a personagem que seduz é a mesma que oferece xarope à filha doente. Não é assim o dia-a-dia, um entrelaçar de magia, marasmo e excitação? Não é exatamente isso, maresia e misericórdia? A poesia está em toda parte. Em grilos, abelhas, sábios e sabiás; em alguém que passa Ajax na pia e depois convida a apalpar costelas na sala de estar. Elementos que parecem não ter qualquer relação dão as mãos por aqui, a ousadia que permite colocar o amor ao lado de escadas rolantes. Desce ou sobe? Cabe ao leitor.
Maresia misericórdia faz também uma incursão pelo insólito. Cavalos marinhos passeiam pelo céu; tangerinas tomam conta de uma sala até imobilizar seus ocupantes. Não há limites, ou dimensões. Os temas e a forma se alternam. Poemas curtos de duas ou três linhas são sucedidos por outros mais extensos. Quando não estão em busca do concreto, compõem fotografias poéticas da catástrofe cotidiana. A unidade do livro não está na forma ou no conteúdo, mas na recorrência de elementos. Borges tinha seus labirintos, seus felinos e seus dúplices. Gabriele tem a culinária, as cores e o erotismo regado a boemia. Trata das dores como quem faz um chá; flerta com um cotidiano belo e ao mesmo tempo opressor.
Uma epígrafe abre o livro: dois leões devoravam homens. Conversando com a autora percebi que minha interpretação inicial estava equivocada. Faltava a conexão com o restante do livro. Dois leões devoravam homens, ela repetiu em voz alta, com ênfase nas duas primeiras e na última palavra. Precisei terminar a leitura para compreender (ou achar que compreendi). Maresia Misericórdia é um livro de contrastes que vai à tarde ordinária ou à sala de estar para expor seus absurdos, que encontra a poesia em cortinas e cisnes. Parafraseando a autora: é o pequeno felino indo atrás de qualquer inseto.
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