O estoque - parte 2
Uma pilha de livros pegando poeira. Árvores cortadas, poluição
despejada na atmosfera, litros e litros de tinta para imprimir essa bagaça
toda. Sim, os livros ainda estão acumulados (se você não sabe do que estou
falando, clique aqui
e leia desde o início). Ontem eu notei que a pilha havia diminuído. Contabilizei
as vendas da última semana e confirmei que os números não estavam batendo.
— Mexeu aqui?, perguntei
para a esposa.
— Não mexo nas suas
coisas.
— Sumiram uns livros. A
Graça não mexeu?
— Ela só vem na outra
semana.
Voltei ao
quarto e refiz as contas. De fato, faltavam alguns exemplares. Como eu já
estava quase atrasado para o trabalho, peguei um livro do Borges na prateleira
e fui.
O trânsito engarrafou
perto da rodoviária. Aproveitei para abrir o livro. Antes que me perguntem:
sim, eu leio no trânsito e não é só no ônibus ou no metrô. Leio no carro
também, dirigindo, quando começa aquele para-e-anda de cidade grande. É uma
habilidade quase mística, longos anos de prática. Em meu favor, nunca matei
ninguém. Uma batidinha de leve em um taxi certa vez, mas a estatística está do
meu lado. Fui ler Borges, uma mão no volante, a outra escorando o livro. Notei
algo estranho no texto. No conto “O Aleph”, em meio às visões do protagonista, percebo
trechos de Chame Como Quiser:
"Vi o populoso mar, vi a aurora e a
tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de
uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos
próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e
nenhum me refletiu, a
música constante. O som, todo o tipo de som se converte na maldita canção. O
canto de uma cigarra e o uivo de um cão. Aquele pássaro que entrou pela janela.
Talvez você não entenda. Olhe o tempo lá fora: está sol, mas se chove, o
gotejar invade meus ouvidos e transforma a batida da água contra as telhas na
melodia tortuosa que não consigo deixar de ouvir. E não pense que o problema é
o telhado. A chuva contra a grama, contra a copa das árvores. O vento. O vento
sacudindo as folhas, os móveis que os empregados arrastam. Seu pulso, esse
relógio, as perfeitas engrenagens em harmonia. Se aproximo meus ouvidos. Não.
Eu não ouso. vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta
anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve,
tabaco, veios de metal, vapor de água,
vi convexos
desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não
esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi
um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma
chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de
Philemon Holland (...)"
O absurdo era
evidente, mas o trânsito avançou e eu não pude ler o restante. Já com o carro
estacionado, continuei a folhear o livro e vi que não era só “O Aleph” que
estava adulterado. Partes do conto “Máscaras” se embolavam à narrativa de “Tlon,
Uqbar, Orbis Tertius” e no “Jardim das veredas que se bifurcam”, trechos de “O
assassino”. Fui trabalhar, atrasado. Passei o dia com a cabeça naquela hipótese
absurda.
Corri para
casa no final do dia, direto para estante dos livros. Antes, recontei a pilha: 5
exemplares a menos do que na contagem da manhã. Fui retirando os exemplares das
prateleiras e conferindo o conteúdo. Notei que “Cidades Invisíveis” estava um
pouco mais pesado que de costume. Abri e vi “O Jardim” inserido na cidade de
Teodora. Adiante, em “Grande Sertão: veredas”, trechos de “Belinha”; em "O processo", partes de “Multiplicai” apareciam em meio ao labirinto de Joseph K.
Passei a noite
remendando livros, recortando os trechos inseridos indevidamente em outras
obras e recompondo os exemplares que haviam se diluído pelos outros da estante.
Ao final do trabalho, encaixotei todos os “Chame Como Quiser” e movi as caixas de
lugar. Torço para que permaneçam ali, comportados. Aliás, você pode ajudar.
Leve um exemplar para sua casa e reduza meu risco. R$40, já com o frete. Só não
posso garantir que ele não irá se misturar aos seus outros títulos. Compre e
assuma o risco. Interessado? Mensagem para andersonhgo@gmail.com
Máscaras, um dos contos do livro que ainda não se misturou com nada
da internet. Dá para ler aqui: https://drive.google.com/file/d/0BytazVLuRyH9dEs1a3V0d2FSclU/view
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