Nunca pretendi concorrer com as sandálias havaianas - Jamil Snege
Jamil,
faz
pouco mais de uma semana que ouvi o nome Snege pela primeira vez. E foi assim
que o reproduzi: Snegue, com se
houvesse o ú entre o gê e o é. Fui prontamente repreendido por quem o
apresentou a mim. Snege, o Marcelino disse (esse mesmo, o Freire). Jamil Snege,
ele repetiu. Anotei em um caderno e fui pesquisar. Minha primeira surpresa foi
perceber que não havia um único texto de sua autoria na internet. Sim Jamil,
hoje em dia as coisas são desse jeito. Se não está na internet, é como não
existisse. É uma sandice, mas foi o caminho que a tecnologia traçou, espelhando
a vida como se fosse maior que ela. Encontrei, contudo, uma série de artigos que
relacionavam seu nome. O Turco, lhe chamavam. As matérias eram todas elogiosas,
sempre mencionando seu talento e irreverência, o que acabou chamando minha
atenção. Fiquei curioso para ler seu trabalho, mas onde estava o material? Perdoe
minha desconfiança, mas se há algo que merece suspeita, é o elogio (você
precisa ver o que andam enaltecendo hoje em dia). Depois de muito pesquisar — o
que nos termos atuais, corresponde a mais ou menos uns trinta minutos — encontrei
finalmente uma poesia sua. Li algumas vezes e achei impressionante, mas ainda era
pouco. 11 livros e nem um único PDF pirata na internet, nem mesmo a página
escaneada de um livro? Por fim, acabei entendendo: Jamil Snege foi desses artistas
que andam pela contramão. Fugiu das grandes editoras e fez arte por conta
própria. Publicou seus livros em pequenas tiragens, o que hoje chamariam de
autor independente, a mão do artista em cada etapa do processo. Em princípio,
achei que a sua opção fosse meramente um contraponto ao mercado editorial, um
caminho tomado por alguns autores da atualidade. Aprofundando minha leitura nos
recortes de sua biografia, percebi que sua opção foi tão artística quanto contestadora.
Explique-me como um publicitário brilhante se recusava a divulgar seu próprio
trabalho literário? Casa de ferreiro, espeto de pau, é isso? Clichê dos
clichês? Foi o que pensei em primeiro momento, mas olhando um pouco para dentro
notei que a questão me parecia um tanto familiar. Cabe aqui uma explicação,
Jamil: eu também tenho um livro publicado. Chama-se Anelisa Sangrava Flores e é
meu primeiro trabalho. Saiu por uma editora pequena e vendeu bem pouco. Não vou
falar de números para não deixar ninguém constrangido (eu, principalmente).
Digamos que tenha vendido bem menos do que minha ingenuidade havia projetado e um
pouco mais do merecia ter vendido. Publicado há uns dois anos e, passadas as
etapas iniciais, esbarrei na barreira seguinte: a divulgação. Na vida do autor
de hoje, excetuando aqueles publicados por grandes casas, cabe um pouco de
tudo. Revisor, editor, malabarista de sinal, psicólogo, cientista político,
celebridade de Facebook, agitador cultural e artista no Youtube. Escrever, não
basta. Contei tudo isso para chegar no seguinte ponto: eu tenho uma puta dificuldade
em divulgar meu trabalho. Adoro falar de literatura e falo com entusiasmo de meus
autores prediletos. Nas redes sociais, faço questão de divulgar colegas que
começaram a publicar ou que estão fazendo um trabalho bacana, mas quando é
comigo a coisa não vai. Não é fácil quando o discurso está na primeira pessoa,
não é mesmo? Fico me perguntando se é algo que também acontecia com você.
Parece que é mais difícil pedir algo para si que para os outros. Soa um tanto
como farsa. Veja que curioso: estou participando de um curso para escritores e
desde o início tenho a vontade de comentar com os colegas sobre esse meu
primeiro trabalho. Talvez se interessem, talvez o título pareça instigante. Mas
coragem, nada. Vender é um saco, né? Uma frase sua ecoa em minha consciência e
talvez tenha relação com o assunto: nunca
pretendi concorrer com as sandálias havaianas.
Ah, Jamil, há
tanto o que falar. Escolha a pauta. No campo da
fantasia, ninguém publica um único volume. As histórias saem, no mínimo, em
trilogias. E quando não há mais o que se dizer, volta-se ao passado dos
protagonistas. Ou conta-se a mesma história a partir de outra perspectiva. E na
internet? Há blogs, vlogs e booktubers. Não é incomum encontrar leitores que afirmam
terem lido 20 ou 30 livros em um único mês. Já ouviu falar em bookhaul? Em
bookshelf tour? Pois é, se antes o livro era sinônimo de status social, agora é
alvo de fetiche. Gostaria muito de lhe dizer que nosso mercado editorial já
evoluiu, que nossas grandes editoras não vivem mais das compras do governo e
que o livro já deixou de ser artigo de luxo. Mas não, ainda não. Onde estão os
livros baratíssimos, em papel de jornal, sem orelha, pequenos e de material
reciclável? Por aqui parece haver uma preferência pela capa dura, o couro,
tamanho e volumes suntuosos que custam pequenas fortunas. E o que dizer da
publicação de biografias de adolescentes que saem aos montes e daquele livro
que é a romantização de um filme baseado em um quadrinho. A postura das grandes
editoras continua a mesma, o modelo que há anos não funciona. Parece que tem
algo errado, não é? E olha que nem falei sobre o debate do livro com preço
único. No mercado tem banana ouro, prata e d’água? Parece que conseguiram, o
livro é, mais que nunca, um produto.
Para encerrar,
queria voltar ao assunto dos seus livros, Jamil. Contei sobre a dificuldade de
encontrar algo de sua autoria na internet, mas acabei não falando de como foi difícil
encontrar um livro seu nas livrarias. Fui achar um exemplar apenas em um sebo
de Curitiba. Paguei 66 reais em uma cópia de Viver é prejudicial à saúde. Um
livro antigo e amarelado pelo tempo, de 77 páginas. Edição do autor, dizia a
folha de rosto. É claro que comprei. Pela internet encontrei outro exemplar custando
300 reais. Estava autografado por você. O valor das coisas na terra depende do
quanto elas se repetem. Veja que curioso: foi justamente a postura editorial do
autor que fez o Jamil raro. Até pouco tempo seus herdeiros não haviam chegado a
um consenso sobre a reimpressão de suas obras e como o resultado, ficamos 10
anos sem uma única republicação do Snege. Li que finalmente chegaram a um acordo
e sua obra estará voltando ao mercado.
Fico por aqui,
Jamil. Vou encerrar com um trecho de Viver é prejudicial à saúde. Lembra
daquela história de compartilhar e divulgar o bom da música, da arte e da
literatura? Vamos a ela:
“A vida é
muito estranha. Já gastei a minha cota de mulheres, já amei e desamei, fui
amado e desamado, mas de repente um arroubo juvenil brota lá dentro e eu me
sinto tolo, núbil e apaixonado. Por nenhuma mulher em particular, mas por
qualquer mulher — contanto que me olhe com uns olhos redondos de ternura, me
fale com uma voz macia, pergunte se dormi bem, se me alimentei, se senti falta
dela. Arroubos. Sou um sujeito totalmente à margem do mercado amoroso ou
sexual. Uma carreira profissional estagnada, uma aparência física que não é das
melhores, o desencanto da idade, a indiferença do mundo. Cultivo hábitos antissociais
e saberes inúteis. Sou capaz de discorrer sobre um monte de bobagens,
identifico árvores, pássaros, minérios. Cozinho razoavelmente. Consigo discutir
durante cinco minutos com especialistas de qualquer área. No minuto seguinte
constato que não me especializei em nenhuma delas. Li os clássicos, ouvi os
clássicos, cito em mau latim, nada sei de grego. De tanto ouvir sobre viagens
internacionais, viajei todo o mundo sem ter ido à parte alguma. E as vezes que
fui, acabei não indo: não encontrei o túmulo do herói, o café dos
impressionistas, a casa onde morreu Balzac, a nascente do Nilo. Peguei o trem
que não devia, o avião antecipado, o hotel do lado oposto, fui ao bar que já
havia fechado. A mulher que amaria, já havia partido, o irmão prometido morreu
na guerra da Criméia, o amigo desejado ficou retido em Istambul, um furacão,
uma avalanche, uma súbita queda de temperatura, uma mudança do fuso horário, um
porre, um mal-estar passageiro, uma diferença de caixa, a falta de um terno
novo, o medo de se arriscar, não ouvir um conselho, ouvir um conselho,
descartar um par de nove, insistir num casamento, alegar indisposição, simular
um orgasmo — e aqui vou eu numa estrada de Cintra ou Arizona, eu e minha
circunstancia do imutável: existo — não sou.”
Ass: Anderson Henrique
A carta foi escrita em 8 de abril de 2016. Um dos exercícios do curso de escrita TOCA do Marcelino Freire. Recomendo a todos.
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